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Parte 1 – Lala e seu povo



Lala é uma Black Hmong que nasceu e mora em Sa Pa e permanece fiel aos seus hábitos e tradições. Fato difícil de se ver num mundo cada vez mais globalizado. Experiência única que tive o prazer de vivenciar enquanto vazia trekking pelos platôs de Sa Pa ao lado de Lala.

Lala usa roupas com base preta e acessórios multicoloridos, como é o costume do seu povo. O nome do seu povo veio do seu tipo de vestimenta, e isso permanece atualmente.

Vaidosa, assim como todas as mulheres que encontrei no caminho, além dos acessórios, Lala usa nos lábios um leve batom que colore a boca; seus brincos são de prata e os diversos panos que envolvem o bebê ao seu corpo fazem uma composição alegre.

Suas vilas tem pouco acesso a estradas e não vi transportes coletivos. Andar me pareceu a forma natural desse povo se locomover entre as vilas e o centro. O centro de Sa Pa em nada se parece com as montanhas, o excesso de turistas, carros, vans e hotéis vêm mudando a paisagem.

Já andar entre as vilas é andar pelos arrozais e isso em muito significa enfiar o pé na lama, por isso quase todas as mulheres usam botas coloridas de plástico e os mais despreparados como eu, fazem do tênis uma bota de lama.

Lala tem uma postura madura, seus passos são largos e determinados e sua pele vermelha do sol e do frio me dizem que tem mais idade do que apenas 25 anos. Percebo pelas mulheres que passam, que todas andam de forma rápida e forte, mesmo que seus pés estejam afundados na lama. São andarilhas habilidosas.

Entre um papo e outro pergunto a Lala se é comum menina com menina ou menino com menino em seu povo. Lala dá uma risada desconcertante, como se eu tivesse falado algo muito engraçado e depois de rir um bocado, complementa: “Não, não, não é não. Uma vez, teve duas turistas aqui, e elas dormiram na casa de uma família. Elas ficaram bastante tempo com o meu povo e quando o povo achou que elas tinham alguma coisa, todo mundo queria ir lá ver as duas. Vieram pessoas de outras vilas conhecer elas. No final as duas mandaram matar um bicho e fizeram uma grande festa para todos da vila e todo mundo gostou. Mas, no meu povo nunca houve isso. Aqui a gente quase não come carne, só uma vez ou outra quando morre um búfalo ou quando alguém faz festa, como as meninas fizeram. Alguns comem uma vez por semana, mas o comum mesmo é a gente comer arroz e milho. A carne de búfalo é gostosa.”

Enquanto caminhávamos pude ver uma concentração de pessoas todas vestidas de preto, sem adereços coloridos em circulo, estão longe, mesmo assim Lala para e todas as mulheres ficam em silêncio por alguns minutos, eu também fico, olhando a cena sem nada falar. Depois de algum tempo, Lala explica: “morreu alguém dessa vila, então toda a vila se reúnem para fazer a despedida. Vamos passar pelo outro lado, tá bem?”. Obedeço e não tiro foto, assim como ninguém do grupo, ficamos em silêncio durante algum tempo.

Depois de passar longe, a conversa continua e Lala volta a falar de seu povo.

“A menina por aqui casa cedo, eu casei com 17 anos”

E é comum a menina namorar antes do casamento?

“Como assim?”

⁃ A menina transa antes do casamento? – E assim sem rodeios vou direto ao ponto, o que faz Lala morrer de rir, para só depois conseguir responder:

“Isso é um problema para o meu povo. O cara pode prometer casar, aí ela cede, e aí ele não casa. A menina vai ficar falada na vila, então é comum ela tomar veneno. Se ela não tomar veneno, às vezes, a família obriga ela a tomar, ou então a menina sobe a montanha e quando os homens vão lá pegar lenha, encantaram a menina e o bebê já mortos. As meninas preferem fazer isso do que passar vergonha. É muita vergonha para uma menina engravidar fora do casamento. Ela fica falada na vila. Meu povo é assim.”

Lala fala o tempo todo “meu povo” e eu posso sentir que há algo profundo nessa forma de falar. “Meu povo” dá a Lala uma identidade, um pertencimento tão forte a ponto de uma menina se matar pelo sentimento de não ser mais aceita pelo seu povo (isso é uma leitura minha), mas o fato é que elas se matam, e Lala fala isso com muita tranquilidade e aceitação.

⁃ E como se evita ter mais bebê, depois de casada?

“Com camisinha hoje em dia. Mas, não era assim, minha mãe teve quinze filhos.”

⁃ Quinze?

“Sim quinze. Meu pai e minha mãe lutaram muito para dar o que comer para a gente. A gente trabalhava nos arrozais, não tinha turismo aqui, só arrozal, era tudo muito difícil.”

⁃ No Brasil tem muita criança abandonada na rua, não vi isso aqui. Existem crianças abandonadas?

“Não, não existe. Se o casal não se cuida e tem muito filho, se é menina sempre tem gente da família que quer ficar, agora se o casal tiver muito menino ele vende ou até mata. Ter filho homem aqui é problema.”

⁃ Mas, vende para quem?

“Vende para alguém da aldeia ou para alguma família estrangeira.”

(Não tive coragem de perguntar como matam.)

“O nosso povo é assim. Antes vivia só do arroz, agora com turismo as coisas estão mudando um pouco. Isso das duas meninas nunca ninguém tinha nem visto. Foi um espanto. O turismo tá mudando muita coisa.”

⁃ Há quanto tempo?

“Eu comecei no turismo há sete anos, as coisas melhoraram um pouco. É, acho que começou por aí.”

Silêncio.


Paula Dutra

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