Nas ruas das grandes cidades brasileiras já é possível ler em muitas camisetas “100% negro!”. Desde os anos 80, teve início um debate interno sobre a diversidade cultural e racial do brasileiro. A maior parte destes debates contaminou à consciência negra pela brecha da cultura popular. A música e as escolas de samba tiveram, nesse sentido, um importante papel mobilizador. A busca da “pureza africana” acompanhou-se também de uma crítica feroz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação de cotas para os afro-brasileiros na universidade e no funcionalismo público acabou por negar a fábula do encontro harmonioso entre as três raças. Durante muitos anos, os negros aceitaram a ilusão de que a mestiçagem poderia ser a solução para a discriminação racial, diluindo a cor em casamentos mistos. Mas a questão da raça está também ligada à da posição social: quanto mais sobem na escala social, mais negros se tornam brancos.
O termo “multiculturalismo”, hoje, tão em moda, designa tanto um fato (sociedades são compostas de grupos culturalmente distintos) quanto uma política (colocada em funcionamento em níveis diferentes) visando à coexistência pacífica entre grupos étnica e culturalmente diferente. A doutrina multiculturalista avança essencialmente a idéia que as culturas minoritárias são discriminadas e devem merecer reconhecimento público. Para se realizarem ou consolidarem, singularidades culturais devem ser amparadas e protegidas pela lei. É o Direito que vai permitir colocar em movimento as condições de uma sociedade multicultural.
A pergunta a fazer é: será que os fins justificam os meios? O princípio da discriminação positiva não se choca com as exigências de igualdade do Direito? Caminhamos no sentido da justiça social? Sabemos que nem todos os membros das minorias são desfavorecidos e os que sabem aproveitar as vantagens são raramente os mais desfavorecidos. Por outro lado, existem grupos da população realmente desfavorecidos que não pertencem à minorias étnicas. Neste caso, todas as diferenças podem ser defendidas? Sabemos que há riscos do tipo: como proteger a minoria das outras minorias, os explorados dos excluídos? A quem cabe a legitimidade de atribuir uma identidade? Não é o indivíduo o único capaz de escolher sua, ou suas identidades de pertença? Mais ainda, quando pensamos que identidades individuais são construídas em oposição ao grupo de pertença.
Nas democracias pluralistas, assistimos a um movimento generalizado de incremento das identidades particulares. Minorias, populações autóctones, grupos de migrantes e imigrantes manifestam seu desejo de reconhecimento cultural. “Viver junto”, é uma questão cada vez mais premente. O processo de reafricanização do Brasil talvez melhore o status social, artístico ou religioso de muitos de nós. Mudanças, contudo, dependem diretamente da redistribuição de renda e do fim das desigualdades imensas entre ricos e pobres. Ai, sim, estaremos prontos para construir uma democracia inclusiva e inter-cultural.
Mary Del Priore
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