Tem uma coisa com ser escritor que me faz acreditar na incapacidade da fala. Pelo menos no meu caso. Eu sempre ou quase sempre quando uso a minha voz, timbre e som, digo algo que eu não queria dizer ou digo de forma meio truncada e a repercussão disso é bem triste. Eu venho constantemente me expondo em tudo o que eu escrevo, talvez pra quando a pessoa me ouvir falar, ela lembrar de alguma coisa que eu escrevi e pensar: ah, faz sentido, ela tá querendo dizer isso por causa disso e tá tudo certo. Eu tenho uma amiga que diz que eu tenho a maior lábia do mundo e eu quase acredito nisso às vezes. É porque desde que eu me conheço por gente os meus grandes companheiros de interlocução foram os livros: os gibis da turma da mônica e do timtim herdados do então padrasto, antes disso os policiais da Ágata Christie que me levavam pro “expresso do oriente” e tiveram outros. Eu aprendi a ler
muito cedo, com 3, eu passeava de carro com a minha avó, um fusca branco, meio dos anos 90, que tinha um chaveiro balançando com a estrelinha do PT – e ela nem sabia... -, passando em frente ao banco, eu sussurrei minha primeira palavra: I-ta-u. Eu não tenho vergonha de ser capitalista desde os 3 anos, eu acho de verdade que se você tá mal a melhor coisa que você pode ler é “transição autorizada” e dá uma paz de espírito quando você compra aquela coisa que talvez você nem use, mas que agora é sua. Enfim, voltando a falar da expressão... eu me comunico quase com um certo grau de autismo, não no sentido pejorativo, se eu fosse seguir a carreira de professora, eu provavelmente me especializaria em autistas, eu acho lindo que o ser humano, mesmo que em estado de doença, consiga encontrar formas de se comunicar, estabelecer ele mesmo, seus códigos e sinais, suas cifras numa tablatura difícil de decifrar, mas que é, com esforço e amor, decifrável. Eu me comunico meio assim, criando metáforas, relações que quase nunca fazem sentido e sempre me adaptando ao meio, claro.
Quando eu tinha 17, eu me apaixonei perdidamente pela minha professora de literatura, eu ainda nem sabia que eu era bissexual ou não me preocupava – e ainda não me preocupo – com taxonomias, eu acho que a gente ama e pronto e quando ama não tem sexo, cor, raça, as línguas se adéquam dentro das bocas um do outro, às vezes em outros lugares, enfim... é encaixe, não explicação ou descrição. Quando eu tinha 17 anos e eu era uma pouco mais
boba do que eu sou hoje, porque menos referências eu tinha, eu me apaixonei pela minha professora de literatura e a única saída para conseguir o que eu queria era me adaptar ao meio. Eu tinha perdido um pouco essa coisa de ler, era terceiro ano do Ensino Médio, eu me preocupava basicamente com quantas pessoas eu tinha ficado no final de semana e qual era a roupa que eu ia usar quando eu fosse pra boate com uma carteirinha falsificada rezando pra não ser barrada na porta, nesse tempo eu ainda gostava da Lapa e eu ainda conseguia ficar até as 7 da manhã dançando, hoje em dia eu acho tudo isso chato. Olha eu me perdendo de novo... o caso é que eu tinha que pesquisar, eu tinha que me embasar muito bem pra poder falar coisas bonitas e inteligentes, mesmo que eu não soubesse ao certo o que eu falava. Quando eu fiz 18 e me formei, eu tomei coragem de começar a conversar com ela, ainda não existia whatsapp e quase ninguém mais usava msn, nossa tô velha! O bate-papo do facebook foi plano de fundo pra mil e uma conversas em que eu ficava com o
dicionário aberto na outra aba do navegador pra conseguir encontrar sinônimos difíceis pra tudo o de mais simples que eu queria dizer. Posso dizer que por causa dela e por ela eu aprendi um milhão de coisas, além do reencontro com a literatura e a certeza do primeiro amor de verdade, vivido com toda a intensidade e etapas, algumas palavras foram se pregando ao meu vocabulário. Sempiterno, do Latim, sempiternus, adjetivo, que dura sempre,
perpétuo; que não teve princípio nem há de ter fim.
E com essa e outras mil e uma que eu aprendi lendo Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Lúcio Cardoso, Rubem Fonseca, García Márquez... Foi ela quem me deu a minha primeira edição de Cem Anos de Solidão e eu lia as 448 páginas em voz alta pra ela dormir e quando saia um pouco do mundo dos Buendía, eu percebia que eu estava lendo pra mim mesma porque ela já estava quase sempre no décimo quarto sono. Foi ela quem me deu, quando eu ainda era aluna e quando ela nem enxergava ainda a paixão erótica que eu nutria, Lavoura Arcaica, que me tirou o fôlego e que me fez decorar passagens e ela me dizia que eu era o Lula, o irmão mais novo, que queria ser como o irmão mais velho e fugir daquela tradição e quebrar também os paradigmas e profanar, transgredir. Foi ela quem me apresentou a transgressão, objeto de estudo de tudo o que eu escrevo e me interesso. Eu lembro de mandar as conversas nossas para as minhas amigas da minha idade (cronológica) e elas diziam: eu não entendo nada o que vocês falam. Tudo bem, eu não entendia muita coisa também, só fingia. Eu fui fingindo tanto que gostava de falar difícil que eu acabei acreditando nisso e uma hora ou outra, na minha vida normal, eu solto umas frases quase sempre zoadas pelos meus colegas de percurso. O caso é que escrever é tão bom, né? Sai tão fácil, sai tão impensado e ler... ler é tão bom também. Eu acredito numa certa mágica e talvez utopia de que o texto se escreve sozinho, afinal, eu abri o word pra falar de mim e acabei falando dela. Mas é porque falar de mim é falar um pouco das influências que eu tive, é falar um pouco de todos os autores que eu li e principalmente das pessoas que trombaram comigo.
E porque eu me orgulho um pouco de ter conseguido sugar algumas coisas de certas pessoas que eu admiro intelectualmente, de ter apreendido isso na minha escrita, somado e transformado em algo que é só meu. Hoje eu tenho um certo amor pela simplicidade, de tanto que eu tentei ser difícil, agora eu tento ser fácil... eu tento ser compreendida por uma escala maior de pessoas e não por um padrão específico, embora às vezes eu tente pagar de cult. E aí eu escrevo umas coisas que tão passando pela minha cabeça completamente turva e confusa, a crise dos quase 30, onde você não sabe onde você tá, quem você é e sabe que quer ser um milhão de coisas que não dá pra ser agora, que talvez você seja aos 40, roteirista, autora, diretora, eu juro que eu não quero fazer filme cabeça...mas talvez eu faça, pegue a câmera e filme o nada, como Godard e enfie um “o silêncio é de ouro” e ache que isso é a minha obra-prima quando a maior parte da população vai sair do cinema pensando o porquê gastou dinheiro com aquele ingresso. Ou talvez eu consiga explicar todas essas coisas difíceis de uma maneira doce e alcançável.
Eu sempre digo que feliz é mulher de pescador que só tem que se preocupar em limpar o peixe... a simplicidade é bonita, o complicado também é, eu acho que eu consigo unir um pouco dos dois. Eu sou aquariana com ascendente em capricórnio... e tem gente que fala que tudo o que eu escrevo é lindo. Enquanto tiver uma pessoa dizendo isso, mesmo que seja só uma, eu acho que eu vou continuar escrevendo.... e lendo, sempre!
Maria Mangeth
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