Odete Rios foi uma das maiores escritoras do país, tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares entre 1960 e 1970. Escolheu para si o pseudônimo de Cassandra Rios, como na mitologia, a sábia taxada de louca. Em Volúpia do Pecado, 1948, seu primeiro livro, Cassandra com 16 anos já subvertia a ordem e narrava a história de duas adolescentes apaixonadas, inclusive com cenas sexuais explícitas e ousadas entre elas – lembremos que isso ocorre na década de 40, pouco mais de 10 anos depois da mulher garantir o seu direito ao voto. Sendo uma escritora tão polêmica e com tanto sucesso em sua época, é de se questionar o porquê da moça, apelidada “Safo de Perdizes”, ser hoje uma escritora desconhecida e pouco estudada. Cassandra enfrentou a censura, a moral e a tradição, a família e a propriedade em prol de uma mulher dona de seu “tesão” e por isso teve quase todos os seus mais de 40 romances censurados pela ditadura militar. Chegou a ser presa, seus livros foram banidos das livrarias e faleceu de câncer, num quarto de hospital bancado por amigos.
Acerca de sua obra, fica a questão: como uma escritora sem livros em circulação seria conhecida a longo prazo? Cassandra, já em 48, tentava nos mostrar em sua literatura a existência de um ser-mulher que deseja e ainda mais, que se vê num contexto onde o homem já não se faz necessário, ela é dona do próprio prazer, independente de seu objeto de desejo.
Judith Butler em seu livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade problematiza a questão da identidade feminina e de sua representação. “(...) A representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido verdadeiro sobre a categoria das mulheres.” (BUTLER, p.18). Segundo Butler, a teoria feminista julga necessário o desenvolvimento de uma linguagem que hipoteticamente é capaz de representar as mulheres completamente ou no mínimo, adequadamente. Isso porque essa representação seria necessária para que as mulheres adquirissem uma visibilidade maior, já que politicamente a mulher sempre foi subjugada ao poder masculino. Segundo o feminismo, a importância dessa representação se dá, pois devido essa condição social feminina, as mulheres eram mal representadas ou quiçá nem representadas. O grande problema é que essa representatividade feminina levanta outra questão de suma importância, a exigência de se construir um sujeito feminino: Quem é o ser “feminino” a ser representado? E “qual o sentido de estender a representação a sujeitos cuja constituição se dá mediante a exclusão daqueles que não se conformam às exigências normativas não explicitadas do sujeito” (BUTLER, p. 25)?
Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo postula que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” ². O gênero nem sempre se constituiu de maneira coesa nos diferentes contextos históricos, isso porque se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que esse indivíduo agrega à sua bagagem peculiar. Em tempos de “Bolsonaros”, ser mulher e ser dona de seus desejos ainda é visto com discriminação e repulsa. A família tradicional brasileira não aceita o fato de que os seres humanos são, por si só, fluidos e capazes de inclinações amorosas que confrontam a ideia tradicional de que foram criados Eva e Adão e por isso, não há espaço para o pecado da maçã. Ainda em Problemas de gênero, Judith Butler evoca Luce Irigaray que nos mostra o quão paradoxal é a própria existência feminina. Segundo Butler, “numa linguagem falocêntrica, as mulheres constituem o irrepresentável” (BUTLER, p.31), isto é, o gênero feminino em essência não poderia ser pensado, haveria uma ausência ou opacidade em sua representação, este não poderia ser restrito ou designável. As mulheres então seriam o gênero que não é “uno”, mas dotado de multiplicidade.
Desde sempre, o desejo feminino foi sublimado em função do masculino. Como dito, uma das mais famosas figuras femininas, Eva, teve sua sede pelo saber transmutada em pecado original por um Deus claramente masculino. Ou seja, às mulheres nunca foi permitido alcançar o ápice do conhecimento, seja ele de mundo, seja ele individual. Beatriz Suárez Briones, em seu artigo Desleal à civilização: a teoria (literária) feminista lésbica, veiculado pela Universidade de Vigo, Barcelona, afirma que “o feminismo deve insistir em que as mulheres são sujeitos sexuais, agentes sexuais”. Segundo a mesma autora, a década de 60 foi o marco da segunda onda feminista. Dentro deste movimento, cada vez mais mulheres se sentiram livres para se auto intitularem lésbicas, para elas, esta opção sexual seria viável para qualquer uma. No entanto, essa corrente de feministas lésbicas classificava o lesbianismo como a mulher que dedica todas as suas energias a outras mulheres. É claro que existiam aquelas que colocavam outras mulheres em primeiro lugar no plano afetivo e sexual, mas o cunho social e político era bem mais relevante. Esta predileção às mulheres de todo modo alterava a concepção falocêntrica das relações humanas, detonava o molde patriarcal. Estava aí a materialização revolucionária da sororidade ³ e da afetividade entre mulheres.
Cassandra sempre foi uma figura polêmica, esteve em meio das discussões a respeito de baixa literatura, alta literatura, erotismo ou pornografia. Em seus romances, denúncias sobre a convenção falocrática, colocando a mulher como sujeito autônomo do desejo e não apenas como objeto de cobiça do homem. Foi por esse discurso, que deslocava o papel da mulher em sociedade, que ela foi podada com a desculpa de que seus textos eram pornográficos. Para poder voltar a publicar, ela criou dois pseudônimos masculinos, Clarence Rivier e Oliver Rivers. Eram textos tão ousados quanto os primeiros, mas tematizavam relações hetero-normativas, portanto não interferiam no regime e na ordem patriarcal, além de serem assinados por “autores” homens, o que explica possivelmente não terem sofrido censura.
Ainda na atualidade, onde há certa evolução no questionamento do papel feminino em sociedade, o que vemos são séries romântico-eróticas como Cinquenta Tons de Cinza, da autora britânica E. L. James, onde o homem é posto em condição de dominador e a protagonista é levada a atender até às mais graves demandas do amado. É possível então compreender o porquê de romances onde há questionamentos como “O que a prendia a mulheres? Por que amava a mulher e não o homem como deveria ser?” por parte da protagonista, serem podados em sua publicação. Cassandra teve 33 de seus 49 livros censurados pela ditadura militar, com a justificativa de que trazia mensagens negativas, entre outros. Cassandra lutava em suas obras, pelo que Marielles, Jeans, Indianaras e outras representações políticas lutam hoje. E como tantos, foi calada. Para saber mais sobre a autora, há documentário "Cassandra Rios: A Safo de Perdizes", dirigido por Hanna Koric, em circulação desde 2013. Hoje, vendido pela Editora Malagueta, de São Paulo, a única editora lésbica da América Latina, criada em 2008, que conta com obras de Cassandra e outras autoras de literatura lésbica, além do dvd. O século XXI não facilitou a circulação da talentosa escritora e nem facilita o reconhecimento dos direitos LGBTQI+ na sociedade, parece que ainda são tempos difíceis para os sonhadores.
¹ Butler, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução, Renato Aguiar. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. ² Simone de Beauvoir, The Second Sex, trad. E. M. Parshley, Nova York: Vintage, 1973, p. 301.
³ Sororidade é o pacto entre as mulheres que são reconhecidas irmãs, sendo uma dimensão ética, política e prática do feminismo contemporâneo.
Maria Mangeth
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